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chuva

Joguei o vaso de babosa, os discos, revistas, fotos, quadros, a vitrola portátil, a tv laranja, joguei as roupas, peça por peça, depois aos bolos; joguei as panelas, os pratos, os copos, talheres, joguei os panos de prato e eles planaram e se estenderam no vento ao próprio gosto, uns abertos, outros fechados em si mesmos. Joguei os livros e no ar eles se abriram como se armassem o voo que sempre quiseram voar, garças brancas, amareladas, garças de inúmeros sulfites sobrepostos como asas de múltiplas gramaturas e histórias, garças tatuadas de linhas negras, paralelas, grafadas com Times New Roman corpo 10. Joguei garrafas de água, latas de atum, pacotes de arroz e açúcar e cada um deles gritou ao seu modo assim que rompeu o lacre que o mantinha preso ao destino que alguém ao acaso lhe impingiu – embalagem e embalado. Depois do grito – Splash! Plaft! Pof!, estavam livres para ser sem a existência do outro: garrafa de um lado, água do outro; lata de um lado, atum do outro. Joguei a bicicleta, a mesa de centro, o fogão de duas bocas; joguei a cadeira de trabalho, o computador com o trabalho inacabado num email recém-escrito e não enviado e joguei o porta lápis de plástico que portava, então, só canetas que não funcionavam. As bocas abertas nos prédios vizinhos invejavam a liberdade das coisas inanimadas que se desvinculavam de mim e se desconjuntavam e se esparramavam livres ainda no espaço; as bocas abertas invejavam meu desprendimento daquelas coisas que eram as mesmas coisas que as mantinham atadas àquelas caixas onde elas, e as coisas, viviam. E das bocas abertas eu invejava seu apego às coisas que era, em segredo, proteção contra o desprendimento filosófico e encarnado capaz de fazer, além de coisas, pessoas voarem do oitavo andar.

ratos

Ratos e mais ratos saíam de dentro do meu armário. Ratos pequenos, minúsculos, que faziam um barulho diminuto e fino enquanto caíam numa cascata de pêlos brancos da prateleira mais alta do móvel. Eles não encontravam a luz do corredor comum entrando pela porta aberta do meu apartamento. Davam cabeçadas no batente e retornavam para o meio da sala a correr em círculos, no escuro, como aqueles carrinhos de controle remoto bate-volta. Um rato grande e gordo que respirava alto e tinha voz de gente mordeu e arranhou minha perna. Quando senti a dor dos dentes dele entrando na carne da minha panturrilha peguei o rato pela garganta e disse ´´escuta aqui, seu rato filho da puta´´, e fui colocando ele pra fora de casa. Mas antes de despejá-lo peguei a pá de lixo, deitei o rato no chão e com a lâmina da pá acertei o bicho no meio, fazendo força pra parti-lo em dois. O rato parecia morto – mas estranhei que não saiu sangue nem tripas dele. Eu o deixei estirado de bruços na cozinha, entre a pá e a vassoura, levantei e voltei à cama pra continuar meu sono – era madrugada. Quando percebeu que havia me enganado, o rato se levantou e saiu correndo pela porta da sala, rumo ao elevador. Percebi a fuga e gritei pro meu vizinho que é policial ´´a algema! me dá tua algema!´´. O vizinho me deu a algema e eu corri o mais rápido que pude atrás do bicho. Alcancei o rato ainda no meio do corredor, pulei nas costas dele e o imobilizei. As patas dianteiras dele já não eram patas, mas umas mãos imundas com unhas grandes e encardidas. Manietado e em pé, o rato já não era rato, mas um desses meninos sujos e loucos de crack que vejo todos os dias zumbizando em frente ao Copan. Enquanto eu o conduzia aos empurrões ao elevador, uma mulher toda trôpega cruzou nosso caminho. O nariz dela estava cheio de cocaína, o rímel derretido até às bochechas, a calça aberta e a calcinha de tela deixando aparecer a xoxota e a virilha mal depiladas. Havia uma exposição de pôsteres feitos em xilogravura nos pilares de cada andar do prédio, e os rostos estampados nos pôsteres eram de moradores do Copan que eu conhecia. Quando chegamos ao térreo, o menino virou rato de novo e escapou da algema e de mim, e se meteu numa fresta escura sob o balcão da vídeolocadora que fica em frente à saída do prédio. Esse texto é só pra avisar o Paulo, dono da vídeolocadora, que tem um rato nóia solto no estabelecimento dele.

foto 7

Aquilo durou dois dias, pouco mais. Aquela força toda, alma de bicho. Depois acabou. Virei gente de novo. Minguada e fraca. Caí semimorta à porta da Igreja do Desterro. A igreja em pé; eu mais cravada no chão do que ela. Os sinos tocavam, ouvi três ou quatro badalos e caí. Abri os olhos e alguém já me carregava nos braços, um homem, e me colocava estendida no altar, uma vela acesa em cada ponta, crucifixo de prata no meio, o metal frio encostando na minha cintura. A fumaça de incenso nublava a igreja toda e deixava a cara do São Sebastião opaca. Reconheci pelas flechas. O homem que me carregou até lá se afastou do altar de um jeito esquisito, uma reverência, a cabeça baixa, não me olhava, e foi se juntar aos homens e mulheres sentados lado a lado, mudos, na primeira fileira de bancos da igreja. Gente. Era a primeira vez desde o desmundo que via meus iguais vivos. Nem tão iguais. Todos queimados, as caras despeladas, derretidas, o tórax e braços enegrecidos de poeira e fogo. As mãos de alguns, juntas, entrelaçadas, pareciam romãs gigantes, róseas e doloridas. Eu sem me mexer, uma natureza morta sobre o altar – mas eu tinha mais pele e viço que todos ali, uns dez ou doze que juntos não teriam couro pra um só corpo. Minhas pálpebras semicerradas e meus olhos revirando nas órbitas procurando os olhos do homem que me levou até lá pra ele me explicar o que era aquilo tudo. Mas ele não me olhava. A mulher sentada numa das pontas do banco levantou e pegou o turíbulo ainda fumegante que estava atrás do altar, às minhas costas, e começou a incensar a igreja toda. Primeiro as laterais da nave, depois o meio; incensou as mãos deformadas da gente que esperava por ela com os braços estendidos. Depois me incensou, e o entorno todo do altar. Arrastou uma cadeira pra perto de mim, subiu nela, e com o turíbulo passeava sobre meu corpo fazendo chegar fumaça até dentro dos meus olhos. São Sebastião era já uma nuvem só, e também a mulher, e as velas, o crucifixo. A igreja toda sob espessa névoa. Sufocada pelo incenso desfaleci outra vez. Ouvi que se levantaram e se aproximaram do altar. Umas mãos ásperas, outras úmidas, foram grudando no meu corpo com força, dos pés ao pescoço. Atavam-me ao altar com as próprias mãos. Eu tinha consciência, mas não energia. Minhas pálpebras coladas como num sono profundo. Eu querendo acordar, mas meu corpo não. Até que uns dentes cravaram no bico do meu seio direito com uma força descomunal e eu acordei com o som do meu próprio grito. No meio da névoa, a cabeça erguida num tranco, descobri meu sangue e o bico do meu peito entre os dentes do homem que me deitou sobre o altar. Com a língua ele botou meu mamilo pra dentro da boca e o mastigou feito chiclete. Meu segundo grito não saiu, nem o terceiro. No quarto, também surdo, deixei cair a cabeça de novo no altar. A dor vinha em ondas concêntricas, todas partindo do meu bico que já não existia. Meu corpo estava colado à força naquela placa de mármore pelas mãos que me sujeitavam, e entendi, de repente, que eu era a oferenda viva daqueles dez ou doze bichos sem pele.

ato III – água

A perfeição ela encontra aqui: um ônibus, a estrada, uma água de coco em caixinha, a ponta de uma coxinha seca e um seriado cliché no computador. No mais, tudo é distração, como apertar por baixo da saia a bunda da menina que a acompanha na poltrona ao lado e a qual vem comendo amiúde. Quando a menina muda de posição na poltrona, ela aproveita e muda também o curso da mão embaixo da saia dela. Sem ninguém no ônibus ver, ela vasculha a xoxota da vizinha com dois dedos em gancho, escavando as paredes moles em busca da ranhura certa. Encontra. Em três minutos o líquido escorre e ela o represa por baixo, com a mão em concha, pra tomá-lo em seguida pingando da ponta dos dedos. Com a língua hidratada ela fica satisfeita como um trabalhador braçal que bebe o primeiro gole d´água depois da lida.

ato II – coxinha

Entre os peitos, por fora, o vestido dela cheira a coxinha. Não cheira, não!, ela contesta, toda putinha. Se ouriça, galo de briga. Deitada no chão, levanta a cabeça pra rebater a calúnia na cara da outra, mas se larga e se espalha em seguida porque o álcool da festa pesa mais que seu corpo. É um prosecco muuuito bom, viu? Da sua boca preguiçosa saem palavras numa mono-sentença: eunumtônãoeunumtôbêbadanão, e seus olhos fechados enxergam a embriaguez por dentro. Pra ter razão, ela tira o vestido ainda deitada, joga-o longe e oferece os peitos ao nariz da outra. Ela, apontando o próprio tórax: e agora, tem coxinha aqui, tem? A outra: tem não, só tem peito. Posso? Ela: pode o quê?, e a outra: lamber. De repente ela se ergue do chão. Em pé, maior e bélica, esconde os seios com os cabelos e alveja: Não! Só porque você disse que tão cheirando a coxinha eu não vou mais deixar você pegar neles! Ela sobe as escadas em seguida, em direção ao banheiro, pisando com força os degraus querendo que sejam coxinhas pra ela assassinar. Vai tomar banho?, a outra pergunta. Shhhmrahmrmhum, ela resmunga lá do alto. Faltando um passo pra perder a mulher de vista, ela se vira e a encara. A outra: posso? Ela: pode o quê? A outra: passar sabonete na tua xoxota? Ela: pode. A outra: e no teu peito? E ela, exalando prosecco, içando a mulher escada acima: pode também.

ato I – prato feito

Os azulejos laranja do boteco carioca ao lado da rodoviária são da década de 70. Os garçons são de 60 e 50, o cozinheiro veio dos 40 e o cheiro de sebo da casa é anterior a todos eles e a eles sobreviverá. Só ela é que veio depois, de 1983. Mas essa casualidade não tira sua fluidez pra andar entre o que é velho e entre os velhos sem tropeçar. Eles, os velhos, gostam bastante quando ela chega. Suspendem por um segundo a viagem da pinga à boca só pra adorar as coxas dela e o mistério da virilha, bunda e xoxota que se escondem atrás de apenas três palmos de um tecido preto. Desgraçadamente, eles não verão aquele galhardo tríptico que nasceu em 83 e adora shorts. Pois não, moça? Ela quer a cerveja mais gelada e um PF gordo. Muito arroz, feijão, batata frita e um ovo mal frito, pingando. Não são onze da manhã ainda e ela repete o PF. O caldo de feijão que sobra no fundo da travessa de metal faz liga com a farofa e a gema mole impregnando as bordas do prato. O ventilador de teto dispersa o bafo carioca pros lados e pra baixo fazendo o suor escorrer mais depressa. Às onze em ponto ela pede a segunda cerveja. Gelada, posta entre as pernas, a garrafa amaina os calores do tríptico oitentista.

foto 6

Tinha um prado ali, onde o mato virou cinza. Era feio. Agora, morto, é feio. Mas tem um tufo de grama incólume que redime a feiúra. Uma, duas puxadas com a mão forrada por dentro e tenho comida. De perto, engrandecida, a grama tem uma penugem mínima no corpo, repelente, correndo ao contrário da língua. A folha em espada estoca o céu da boca e um amargo come as papilas pelos lados. O músculo rejeita, joga pr´um canto e outro a massa. Custa a passar a comida adiante. À força a garganta se abre e fecha sem olhar o que recebe, e o corpo inteiro estremece e grita que grama é ruim pra caralho! Mas passa. Comer, como rotina, não é grande coisa. Não era. Mas comer no desmundo é de cortar o coração. Isso tudo e ainda é um dia. E não termina, parece. Mais, se estende. Fim que é fim não acaba: se espreguiça, lânguido, pra sempre. O charuto, pelo menos, tá na metade. A mochila ficou pra trás. Eternizados. É bom pr´eu não ter pena, outra, de mais uma coisa chegar a termo sem eu dizer que sim ou que não. A bicicleta. Essa não acaba tão cedo por muito que eu a gaste em fuga. Pra onde? Pra lá e pra cá com os pneus no asfalto, escrevendo no solo à fricção da borracha um prólogo sobre o nada. Tô pelada ainda. Unha alguma da mão lascou. Do pé, sim. Uma cereja que enganchou no pedal. O joelho tem uma crosta de sangue. Melhor, que assim o corte lacrado não vira caldo pra bicho. O músculo da coxa estirou atrás. Tá puxando. Foi o sprint no bar, aquele salto, três, quatro lances num pulo, não dá, tem que ver isso, treinar, sei lá, pr´uma próxima fuga, uma outra gota, um bicho, gente, uma garrafa quebrando. Quebrando sozinha? Num lugar vazio? Mas quem? Quem poderia? Isso tudo. Não acaba. Se já acabou! A barriga tá vazia de grama e cheia de ácido gástrico. O fim alonga braços e pernas. E é tudo pensamento besta pra desviar a mão que ainda cava minhas tripas pelo meio, afastando todas, tubo por tubo, pros lados. O epicentro da fome fica atrás do meu umbigo.

foto 5

A negra magrinha de cabelos curtos chegou em casa toda puta largando o pacote do açougue em cima da mesa e brigando comigo e me dando tapas de leve na nuca e perguntando sem querer saber a resposta por que eu havia saído descalça daquele jeito bem no dia do fim do mundo?!. Eu disse ´desculpa preta mas perdi meus sapatos pr´uma gota que caiu bem em cima deles, aqui ó, tá vendo?´, e ergui o pé direito até a altura do ventre da preta que já quase me lembro como se chama, quase me lembro, sim!, se chama Cida a negra magrinha de cabelos curtos e toda espigadinha como dizia minha avó. Cida pegou meu pé como se ele fosse um cacho de uvas muito delicado e o aparou por baixo com a mão em concha cuidando pra que nenhum movimento brusco terminasse de arrancar a pele que estava toda desbeiçada pendendo do calcanhar feito casca de tomate cozido. A gota de sol teve efeito de napalm e o estrago só não foi maior porque a bota ortopédica branca que eu usava no dia estava dois números acima do meu e foi justo naqueles dois números extras na ponta que a lava caiu primeiro me dando três milésimos de sorte pr´eu tirar as botas antes que a lava comesse meus pés de uma vez. Eu nunca tinha visto a Cida chorar até aquele dia. Ela só ralhava comigo de brincadeira  e ria das minhas cagadas e de uma cagada em especial de quando comi escondida atrás da porta do quarto uns cinco ou seis batons vinte-e-quatro-horas de uma caixa com dez que meu pai trouxe do Paraguai pra minha mãe e a Cida adorava relembrar isso e me dar tapas na bochecha e me chamar de praga sempre que terminava de recontar a história mais pra si mesma do que pra mim. Eu nunca tinha visto a Cida chorar e isso aconteceu quando ela pegou meus pés queimados e viu de perto que eles nunca mais seriam os mesmos e que sempre haveria uma cicatriz neles a me lembrar que o mundo tinha acabado bem antes  d´eu poder conhecê-lo. Cida ficou muito compenetrada quando chorou. O tórax dela estremecia pra dentro, sufocado, querendo represar o manancial de tristeza que se formava e ela não sabia onde desaguar. Depois de um suspiro muito profundo Cida voltou a ser Cida de um jeito que eu entendia: me deu um tapa de leve no rosto me chamou de praga e foi até a cozinha pegar azeite e vinho e pano de prato pra apaziguar minha ferida do jeito que ela tinha aprendido com o bom samaritano na bíblia que lia todos os dias enquanto esperava a água do arroz secar. Só quando a Cida entrou na cozinha e eu olhei pra ela de costas é que vi que da ponta da cabeça até a cintura ela estava completamente queimada e sem pele, como se a lava, em vez de gota, fosse uma língua que lambeu a Cida de cima até embaixo arrancando dela todo o negrume da pele preta. Cida estava cor-de-rosa. E devia arder infinitamente. Mas ela não deu um pio sobre seu azar. Ungiu meus pés com azeite e vinho, enrolou os dois  em panos de prato com água fria e voltou pra cozinha a preparar os peitos de frango que comprou pra me fazer grelhados com arroz feijão purê de batata farinha e banana. A preta que me azeitava a infância nunca mais saiu de lá.

Quando acordei no chão do circo eu já não tinha cinco anos de idade, mas trinta. Meus pés estavam intactos, mas o mudo lá fora não. A Cida é a quinta foto de um sonho que não se revela.

foto 4

A criação aniquilada merecia uma metáfora: uma lona azul e branca, vagabunda, cobrindo bichos vivos do lado de dentro e exilando domadores mortos do lado de fora. O circo permaneceu em pé, mas os circenses não. Público não havia – era segunda-feira quando o mundo acabou, dia de folga no Super Trupe Imperador. Nenhum bicho se manifestou quando entrei na ala das jaulas. Eram dezenas, com macacos, elefantes, tigres, cachorros e cavalos, todos em silêncio. Irmanamo-nos à custa da misericórdia filha da puta que nos manteve vivos. Àquela altura éramos imortais, já que nem o fim tinha sido bastante pra destruir nossa carne dura. Atrás de uma das jaulas anunciava-se um pé humano, inteiro, de um corpo deitado de bruços. Aproximei-me. Pela bunda e coxas lisas, era mulher. Fora poupada da gota de sol, mas morrera, sei lá como. Virei o corpo de barriga pra cima. Era mulher mesmo, com barba e bigode postiços, e já fedia. Os cabelos estavam empastados, tinha uma franja à altura da sobrancelha, e uma boca entreaberta, carnosa, os dentes secos e os olhos arregalados. A barba descolava pelas costeletas. Um macaco levantou-se e caminhou de uma ponta à outra da jaula. Me olhava como se implorasse. Pela mulher ou por mim? Pedia. Fome? Coloquei a cabeça da mulher no meu colo e encostei a minha cabeça numa pilastra de madeira. O mundo poderia acabar repetidas vezes, infinitamente, que nada seria mais forte do que o primeiro cagaço de fim absoluto que eu acabava de sentir. Era tão forte que eu já estava morta antes de morrer. Um ruído escapou da boca da mulher. Um arroto mínimo. Os gases que ainda estavam nela saíam pelo orifício maior. Aproximei meu ouvido pra perceber melhor o ranger de tripas. O macaco que me olhava mais de perto gritou, agarrou-se à jaula e a chacoalhou ferozmente. Os outros dez ou quinze símios fizeram o mesmo, e dispararam uma rebelião encarcerada. De repente, o Super Trupe Imperador reviveu aos gritos, safanões de grades, rugidos e exasperações da fauna remanescente. Fiquei atordoada. Um frio paralisante na barriga, pernas e braços. Amoleci e enrijeci num segundo. Lembrei-me da criação em estado natural, e viva, minha família e amigos. Mas já era tarde. Colei minha boca na boca da morta, com força. O bigode dela entrava no meu nariz. Meu corpo sem roupa colou, na horizontal, no corpo dela, em maiô violeta. Os macacos atiravam serragem em mim. Meu corpo cada vez mais teso, igualando-se ao da morta, queria entrar no dela. Mordi sua boca, o nariz, a bochecha, apertei seus seios, as coxas. Encontrei um vão na cava do maiô esgarçado, entre as pernas, e meti a mão lá. Estava seco e refratário. Meti assim mesmo. Meu peso sobre seu ventre fez a mulher expelir os gases também pelo nariz. Os gritos dos bichos só cresciam. Fúria deles e minha. Comi a mulher. Comi a mulher com a mão. No fundo, eu queria gozar, não o corpo, mas a morte dela. Eu tinha inveja da morte dela. Programei a câmera pra disparar em 15 segundos a quarta foto. Voltei ao chão, na horizontal, minha cabeça entre as pernas da mulher barbada. A criação aniquilada merecia aquela metáfora: eu, imortal, bebendo a morte em violeta.

foto 3

Me excitava a ideia de ser um bicho. Sem banho. Amoral. Ignorante. Revirar casas e lixos e os corpos das pessoas nas ruas em busca de alento físico. Eu começava a sentir fome, sede e muito calor. Não havia explicação pra tara insurgente a não ser o puro instinto de sobrevivência que cada homem e mulher carrega dentro dos ossos. Diante do desalento material e da ausência de meios, eu era inimputável. O centro da cidade estava quase deserto. Restaram uma papelaria e um boteco. Só me cabia comer e beber do que havia nas prateleiras cheias de sebo do bar. Deixei a bicicleta e a máquina fotográfica à porta. Entrei. Moscas patinavam sobre finas películas de gordura espalhadas pelo balcão. Copos meio cheios e cadeiras caídas indicavam que os clientes saíram de lá às pressas, sem tempo de dar o último trago. Encontrei uma só compota de batata ao vinagrete em todo o bar. Tive ânsia quando senti o bodum azedo que saía dela. O paladar treinado me traía. Foda-se!, gritei. Era o que havia. Mastiguei a batata e fiz a pasta descer com água. Vomitei em seguida. Porra! Porra! Senti pela comida desperdiçada. Tirei a roupa toda pra baixar a temperatura. Eu estava mole. Fui até o salão de jogos no andar de cima, abri a janela e estirei meu corpo sobre uma mesa de bilhar. Meti a mão numa das caçapas e encontrei três bolas de um jogo não finalizado. Mirei num anúncio de refrigerante na parede e atirei duas bolas nele, insolente, uma depois da outra. Pensava onde poderia haver comida e secava o suor que escorria pela nuca. Ao erguer a terceira bola, ouvi um estrondo de garrafas se espatifando no bar. Rolei da mesa ao chão num segundo, desci as escadas aos pulos e corri derrubando cadeiras, mesas e copos até chegar à saída. Minha roupa ficara sobre o balcão. Pulei sobre a bicicleta em movimento, o selim ofendendo a xoxota nua, a câmera pendendo do guidão e quase enroscando no aro dianteiro. Pedalei em linha reta por uns dez minutos. Parei quando já não enxergava o centro da cidade atrás de mim. Estava num lugar ermo, destruído. Exausta. Só então reparei que sangrava bicas no joelho direito. O corte era profundo. Sem nenhum tecido pra limpar o sangue, meti a boca na fenda. O instinto mesmo parecia ter providenciado aquele talho pra me fazer ser o que devia ser: um bicho. Me alimentei com meu próprio sangue. A terceira foto não poderia ser outra senão a da minha boca derretida em vermelho.